16 janeiro, 2008

O dia em que o Circo veio à cidade...

Sou daquele tempo em que os circos itinerantes eram recebido com expressões de júbilo pelos petizes, na chegada a povoações recônditas. Chamar-lhes Circo era certamente um eufemismo. Uma ou duas roulotes maltratadas, caindo de ferrugem, e basicamente uma minúscula tenda, com a restante parte do recinto a ficar a céu aberto, perante um mar de estrelas que pontuavam o firmamento. Cadeiras desconfortáveis, espalhadas por um chão de tera batida e a música estridente, saindo de altifalantes cinzentos, com os fios descarnados bem à vista. Seguia-se o tradicional número de magia, geralmente a cargo de alguém ostentando um farto bigode e, naqueles dias de sorte, um número de contorcionismo, a cargo da beldade de cabelos negros como breu. Hoje em dia este espectáculo tem um termo novo. Um estrangeirismo. Seria apelidado de "kitsch". Mas eu gostava...

Nos últimos dias a minha filhota, aproveitando a pausa natalícia, do alto da ingenuidade típica dos 5 anos [quase a fazer 6, como ela gosta de afirmar] pediu-me naquela vozinha melosa e adocicada, usada quando ela quer algo: "Papá, podemos ir ao circo?", e pestanejava, deixando aqueles belos olhos amendoados fazerem o trabalho de sedução.

Eu sorri, beneplácito, afagando-lhe ternamente os cabelos. "Ao circo? Mas porquê ao circo, Filipa?".

Depois do longo suspiro da praxe, forma como ela habitualmente mostra a exasperação perante a ignorância dos adultos, lá disparou: "Para ver os palhaços!", pontuando a rispidez da resposta com as mãos nas ancas, imagem de marca da impaciência.

Peguei nela ao colo, calando os protestos de quem já se acha indigna de um tratamento "de bébes", e expliquei-lhe, usando a pedagogia paterna.

"Mas Filipa, se é só para veres os palhaços não precisamos de sair de casa. Se ainda quisesses ver os elefantes, os tigres, os leões, ou aqueles perigosos números acrobáticos, ainda pensaria nisso. Mas palhaços...", expliquei-lhe...

"Em casa, papá?", perguntou ela, com algum cepticismo à mistura.

"Sim", expliquei eu. "Queres ver?", e estendi a mão, carregando no botão do comando da televisão. Esta iluminou-se, como por magia.

Mas o ar curioso dela foi rapidamente substituído por uma expressão, misto de desânimo e enfado. "Papá, isso não é o circo. É futebol...", explicou ela, quase soletrando as palavras, procurando desfazer o meu aparente equívoco.

Sorri, já esperando uma resposta daquelas. Abanei a cabeça, teatralmente. "Não, não Filipa. Parece um jogo de futebol, mas não é...".

Não a convenci. Os braços cruzados sobre o peito, a expressão facial carregada, o queixo na sua pose altiva eram sinais inconfundíveis de que ela não se deixava ludibriar.

"Olha, vês aqueles meninos vestidos de cor-de-rosa?", perguntei de forma retórica, mas acentuando a cor das camisolas. Um esboço de sorriso, de início tímido, mas abrindo-se lentamente numa calorosa gargalhada...

"Sim, são ridículos, não são papá. Cor-de-rosa?" e finalizou com um trejeito que subentendia bem o estereotipo que as crianças associam a adultos masculinos vestidos de cor efeminada.

"É a roupa de trabalho deles, Filipa", condescendi, mas sentindo uma pontada de orgulho pela sagacidade da miúda.

Ela, admirada, olhou-me algo incrédula. "É assim que eles jogam à bola?", questionou...

"Sabes, eles não jogam bem à bola. São um grupo que pertence ao Circo..."

Os olhos delas brilharam de entusiasmo. "Ao circo, papá? Como se fossem do Circo Chen?".

Gargalhei novamente, admirado com o que um cérebro de 5 anos [quase a fazer 6] já consegue absorver. "Sim, Filipa, como se fossem do Circo Chen. Mas estes são de outro...", elucidei-a...

"Oh, mas estes não prestam", exclamou ela amuada. "As roupas são feias...".

Fui salvo pelas imagens. O realizador focava, num grande plano, Luis Filipe Vieira. Apontei-o, excitado... "Olha, olha, vês aquele?", conseguindo despertar-lhe a atenção. "Vês as orelhas?", ao que ela acenou, afirmativamente, os olhos presos na imagem, expectantes... "Lembras-te da história que te contei, do elefante Dumbo?"

"Aquele de grandes orelhas, que voava?", respondeu ela, já com os olhos a brilharem de atenção.

"Exacto. Este senhor também faz a mesma coisa. Abana com a orelhas e voa...", procurei dizê-lo, num tom sério, mas a voz tremia-me, acometido por um ataque de riso.

Ela olhou para mim, os olhos desconfiados analisando a minha cara, em busca a verdade. Tentei prender-lhe a atenção com outra coisa. A câmera de tv passava os rostos dos jogadores, em grande plano. Apontei para Luisão... "Olha este...", provoquei-a bondosamente. Ela fez um esgar de horror.

"Este é o gigante mau. Faz o papel de aberração. Tem arame farpado nos dentes, uma cabeça cónica, uma ligeira corcunda e um mau feitio terrível. Afasta-te dele..."

Inquieta, encostou-se a mim, ao aconchego do colo. Aproveitei para ir dissertando, à medida que os rostos apareciam.

"Olha, este adora travestir-se de mulher [Nuno Gomes], a este chamam o Tractor de Atenas ou o Demolidor Implacável de Pernas [Katsouranis] e este finge que ainda sabe jogar à bola [Rui Costa]. Como vês, é um grupo e tanto, não é?", procurei animá-la...

"Ohhhhhh", fez ela, amuada, "não têm piada nenhuma. Eu queria ver palhaços...", pediu, com as lágrimas a brilharem nos olhos...

Rezei por um milagre. E ele deu-se. No relvado, o Gigante Mau e o Tractor de Atenas engalfinhavam-se denodadamente. A letargia da Filipa foi substituída pela euforia. Batia palmas, contente. "Olha, olha papá, estão a lutar..."

"Anhhhh...sabes...é só a fingir...",
disse-lhe eu, já atrapalhado. Arregalei os olhos. Em grande plano aparecia o dedo médio do Demolidor Implacável de Pernas, bem esticado.

"Que gesto é aquele, papá?", perguntou inocentemente a Filipa. Praguejei em voz baixa. Os jogos do SLB deviam ter a bolinha encarnada, no canto superior direito. Desliguei a televisão. Saltei do sofá.

"Filipa, e se fossemos ver um Circo a sério?".

18 comentários:

  1. Qual Harry Potter, qual carapuça... em termos literários, o que está na moda, é mesmo ler as 'histórias de encantar' by Paulo Pereira... mai'nada!

    Pois é Amigo Paulo, nem imaginas as gargalhadas que me provocaste ao ler as tuas respostas/provocações cheias de ironia mordaz, em contracenso com a 'inocência' ainda da tua Filipa.. porque será que consegui visualizar todo esse momento?

    Mas, convém chamar a atenção que no 'sumo da questão' aqui retractada, qualquer coincidência com a realidade... é a mais pura verdade!!! :D

    aKeLe aBrAçO,

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  2. Fantástico:) Fartei-me de rir e tal como o Blue boy tb visualizei todo aquele momento.) és demais Paulo. Qq dia fazem-te uma espera:) E o circo continua e agora nos intervalos oferecem Pepsi:)Ou sepsi?

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  3. E se tem acontecido o que eu refiro, num post que escrevi...o circo pegava fogo! Ia acontecer-lhes o mesmo que ao Belenenses.Mas ao P.P.leva lá a miuda ao circo,para ela ver palhaços a sério, que esses, coitados, são não palhaços, mas aprendizes de feiticeiros.
    Um abraço

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  4. Um pai têm que estar sempre presente na educação dos seus filhos.
    Mas o circo da luz, não é bom para as crianças, assim elas ficam sem esperança para o futuro. Pensam que o mundo é cinzento, triste, por vezes animado por uns palhaços cor de rosa, que não têm piada, apenas são ridículos.

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  5. Eles são uns infelizes, é o que são.
    Chegam ao recreativo com ilusões de que vão para o melhor (argh...) clube do mundo,um colosso da Europa... bah!!! Depois, é o cair na realidade e este episódio entre aqueles dois não podia expressar melhor o que por lá dentro de passa.

    Nada como começar o dia com um artigo tão bem humorado :)

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  6. Parti-me a rir, à desbrgada.

    Caro Paulo Pereira, encontrar melhor circo seria difícil!!!

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  7. Visitem este blog lol

    http://resumo-do-marvermelho.skyrock.com/

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  8. Espectaculo Paulo!!!
    Um abraço

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  9. Parabéns por este pedaço de "metáfora" real.

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  10. Penafiel 0-F.C.Porto 4: Juventude promissora e grande Rui Pedro!

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  11. Excelente!!!

    abraços

    http://estrelasdofcp.blogspot.com

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  12. Paulo :

    Quando os meus tinham 5 anos e, não queriam comer a sopa , aí sim , já sabiam que o castigo era ter que equipar de vermelho !


    Leva a Filipa ao Circo Verdadeiro (e não a obrigues a vê-los na televisão ou vestir-se de vermelho )!

    Excelente !

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  13. Paulo,

    Em grande, como sempre!!

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  14. Não sei se o amigo Paulo Pereira tem de facto uma menina de cinco "quase seis"anos de idade,ou se a menina é só um personagem ficticio para dar um certo ar dramático ao conto que escreveu!Se tem de facto uma filha dessa idade acho que o namigo não deve cometer atentados contra a sua inocencia!Não quero dizer com isto que não estou de acordo com o que o amigo escreveu,antes pelo contrário!Espero sinceramente que não me leve a mal,uma vez que a minha opinião não tem um minimo de intenção de o ofender,pelo que me resta dar um abraço DRAGONIANO ao meu amigo,aconselhando que continue a escrever,uma vez que sabe fazê-lo"tomara eu saber tambem"!

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  15. Condor,

    A Filipa é mesmo bem real:)
    Um pequeno demónio endiabrado, responsável já por alguns cabelos brancos, mas terrivelmente doce quando quer...

    Ah, e para meu grande orgulho, já sabe enumerar 6 dos nossos heróis:
    Pinto Costa (assim mesmo, sem o "da"), Côresma, Bruno Alves, Licha, Lucho e o Paulo São:)

    Nada mau, nada mau:)

    Por outro lado, sempre k, em qualquer circunstância, ouve o nome do Benfas, exclama bem alto:
    "Arghhh...k nojo"!

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  16. Um beijão para a Filipa e um abração para o pai babado!

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  17. Amigo Paulo..em grande...bem ao jeito de uma qualquer divina comédia...Seja sempre iluminada essa mente criativa..pois a par de mais algumas coisas..os textos e post são um bom motivo para eu vir trabalhar e sorrir...1º imprimir o teu post...depois coloca-lo em detaque neste burgo de vermelhos e ver a cara dos mesmo...
    É lindo....

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